domingo, 12 de dezembro de 2010

DOSSIÊ/ERA LULA.O homem e o partido


DOSSIÊ/ERA LULA
O homem e o partido
Ações de governo e estilo pessoal do presidente, com sua rica história política e de vida, estão no centro de avaliações que buscam interpretar a herança de Lula
Otávio Soares Dulci

Renzo Gostoli/AP - 13/2/04

O presidente Lula fala durante aniversário de 24 anos de fundação do PT, debaixo de foto de passeata do fim dos anos 1970
A poucos dias do término de seu mandato, o presidente Lula pode se sentir realizado, pois entregará o país à sua sucessora em condições bem melhores do que o recebeu. O sucesso de sua presidência é medido pela aprovação ampla que tem recebido do eleitorado, segundo repetidas pesquisas de opinião. E esse sucesso, a que se deve? Por certo, inúmeras análises serão feitas daqui por diante para tentar responder a essa pergunta. E diversas interpretações já circulam há tempos. Elas costumam salientar as condições favoráveis do cenário mundial ao longo deste início do século 21. Fala-se também do trabalho realizado pelos governos anteriores, no sentido de preparar o terreno – econômico e institucional – para o impulso que o Brasil vem experimentando nos últimos anos.

Tudo isso é importante, mas cabe perguntar que significado teve a presença de Lula (com sua equipe de governo, naturalmente) nesse contexto. Qual a parte que corresponde à sua condução política na explicação do cenário positivo com que se encerra o mandato? E ainda é preciso ter em mente a bagagem pessoal, a história de vida, que sempre influi no ânimo dos homens de Estado e que no caso de Lula parece ser particularmente marcante, a determinar suas escolhas e preocupações.


O que se tem chamado de lulismo é a síntese de tais fatores. O termo alude ao personagem e à sua circunstância. Ao seu estilo de administração e às opções que adotou como chefe do governo. “Ismos” são utilizados para designar ideologias, movimentos políticos e também lideranças que se tornam referenciais. Lula está nessa galeria. É um político que se tornou referencial na história contemporânea do Brasil, tanto para seus eleitores quanto para seus críticos. E essa característica se desenvolveu no decorrer dos oito anos de presidência. Antes, ele já despontara como líder carismático – na verdade, desde as greves do ABC, na fase final da ditadura –, mas não se falava em lulismo. Tendo encabeçado a fundação do Partido dos Trabalhadores, o PT, seria mais adequado atribuir a Lula a condição de principal expressão do petismo. Isso durante mais de 20 anos, desde o surgimento do PT, em 1980, até a quarta campanha presidencial, em 2002.

A partir daquela campanha, petismo e lulismo começaram a se distinguir, ainda que imprecisamente. Podemos identificar três fases no governo Lula, para fins de análise da relação entre os dois componentes. A primeira fase se estendeu de 2002, com a campanha eleitoral em que Lula finalmente ganharia a presidência, até 2005, quando enfrentou grave crise política. A segunda fase corresponde ao período 2005 a 2008, quando eclodiu a crise econômica global. Aí se iniciou a terceira fase, desde a crise até o atual momento.

Um episódio marcante da campanha de 2002 foi a Carta ao povo brasileiro, divulgada em meados do ano, cujo cerne era um compromisso com a estabilidade econômica de acordo com as grandes linhas da política praticada pelo governo Fernando Henrique Cardoso. A carta assegurava o respeito aos contratos em vigor, afastando qualquer veleidade de calote.

A Carta ao povo brasileiro não foi apenas um movimento tático para domar especuladores e acalmar analistas de risco à beira de um ataque de nervos. Muitos, à esquerda e à direita, achavam isso. Mas não Lula, que levava a sério os compromissos assumidos no documento. E nisso temos um elemento relacionado com sua história de vida. Nascido e criado em família pobre, Lula experimentou, como todos os de sua classe, o mal que representa a instabilidade financeira, expressa pela inflação descontrolada, para quem não tem meios de se defender dela. Já adulto, a vivência como líder metalúrgico reforçou essa preocupação, uma vez que as pautas sindicais da época buscavam repor as constantes perdas salariais provocadas pela inflação. Assim, uma atitude cautelosa, conservadora, no tocante à moeda e à administração financeira, revelou-se desde o começo como um dos traços do lulismo.

Outro traço que se evidenciou desde o início do governo, e também derivado da experiência sindical de Lula, é um estilo conciliatório focado na coordenação de diferenças. Acostumado à interlocução entre trabalhadores e empresários, Lula procurou criar espaços de articulação de interesses na área governamental. Um exemplo é o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, fórum de discussão e formulação de propostas de políticas, onde se encontram pessoas de diferentes classes e instituições.

O estilo agregador de Lula tem sido, com frequência, destacado como singular em virtude mesmo de sua trajetória pessoal e política. Como homem de origem operária, ele dispõe de uma margem de credibilidade única junto aos setores populares. Isso seria uma vantagem para o desenvolvimento político do país, na medida em que amplia sua governabilidade.


Estado e sociedade Mas há também uma leitura oposta, que vê na propensão negociadora de Lula uma tendência a atrair para a órbita do Estado os conflitos de interesses, com resultado funesto para a democracia, já que reduz o espaço da política como atividade da sociedade civil. No contraponto entre Estado e sociedade civil, esta última teria sofrido perdas relevantes ao longo da última década. Essa leitura tem sido vocalizada pelo sociólogo Luiz Werneck Viana e por diversos articulistas da revista Política Democrática, ligada ao Partido Popular Socialista (PPS).

Trata-se de ponto importante a discutir. Talvez estejam em pauta, nesse debate, dimensões diferentes do processo de democratização. Se houve estreitamento da política no campo da sociedade civil, no sentido apontado por Viana, terá também havido, na fase recente, maior abertura do Estado à manifestação de interesses e a seu processamento sob a forma de ações e decisões concretas. Nesse sentido, a aposta na atuação dos conselhos setoriais (de saúde, de assistência social, de educação, da criança e do adolescente etc.) coincide com uma das bandeiras caras ao PT, a da democracia participativa. Da mesma forma, fez-se um grande investimento na realização de conferências temáticas, que vão desde o nível local até o nacional, das quais se originam definições relevantes de políticas públicas. O que caracteriza tais iniciativas é o diálogo e a negociação entre múltiplos atores, governamentais e privados, inclusive do terceiro setor, além das corporações respectivas, sem falar de outras partes interessadas (como usuários dos serviços).

Ao passo que privilegiava esse tipo de interação com classes e grupos de interesses, Lula nunca demonstrou gosto especial pelas combinações políticas no âmbito parlamentar e partidário. Nem o PT tinha perfil de partido convencional, voltado para o jogo parlamentar. A maior parte de seus representantes se compunha de dirigentes sindicais e ativistas de movimentos sociais de vários tipos. Como vigora no Brasil a fórmula do presidencialismo de coalizão, sua escolha inicial foi operar pragmaticamente com uma base parlamentar um tanto fluida, escolha pela qual Lula e o PT pagaram um alto preço quando sobreveio a crise do chamado “mensalão”.

Aquela crise de meados de 2005 abriu uma segunda etapa do governo Lula. O efeito imediato das denúncias do mensalão foi a perda de densidade do PT e do próprio Lula nas classes médias, uma de suas bases históricas de apoio político e eleitoral. Mas houve outros desdobramentos.

Dentro do PT e das esquerdas, instalou-se um clima de constrangimento, contraponto inevitável do purismo ético de outrora. O PT se tornara um partido como os outros, era o que dizia a oposição e ecoava a imprensa. O processo de eleição direta para seus diretórios que o PT promoveu logo em seguida teve um elevado nível de participação, como se seus membros quisessem reiterar a fidelidade ao partido numa hora difícil, a despeito dos desacertos da cúpula. Como se dissessem: “O partido é nosso, e não apenas desses aí...”.



Lulismo e petismo Contudo, o desdobramento mais importante da crise política de 2005 foi o fortalecimento gradual de Lula em contraste com o enfraquecimento do PT, que ficou visível nas eleições do ano seguinte. O lulismo se distanciava efetivamente do petismo. Essa bifurcação foi bem captada por um livro pioneiro sobre o tema: Lulismo, do sociólogo Rudá Ricci. Entre outros aspectos importantes, o estudo de Ricci focaliza a mudança que ocorria no âmbito da opinião pública, a indicar uma barreira surpreendente no fluxo de informações das classes médias para as classes baixas. Esse fenômeno tem se revelado dos mais decisivos no cenário brasileiro da atualidade e sem considerá-lo não se pode compreender a força adquirida pelo lulismo.

O padrão anterior era de influência substancial da “opinião pública” (significando a opinião das classes médias) sobre os setores populares, por um processo de extravasamento paulatino dos assuntos, das campanhas e das denúncias de cima para baixo. O caso clássico foi o impedimento de Fernando Collor. Outro exemplo seria o declínio do prestígio de Fernando Henrique Cardoso no segundo mandato. Porém esse padrão não se reproduziu na esteira do mensalão. E isso ocorreu em virtude de uma movimentação em larga escala no cenário político brasileiro, objeto de estudo recente do cientista político André Singer (“Raízes sociais e ideológicas do lulismo”). Houve um deslocamento dos setores de baixíssima renda em apoio a Lula, estabelecendo um vínculo muito sólido que denotava a crescente autonomia de tais setores em relação aos oligarcas a que sempre se subordinaram.

Esse movimento tinha a ver, é claro, com outro elemento estratégico do governo Lula: a política social. Fez-se um esforço considerável de redução da pobreza por meio de mecanismos de transferência de renda, como o Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada (BPC), para idosos e deficientes pobres. A combinação de programas sociais com a política econômica (abrangendo o controle da inflação, a expansão do emprego, a elevação contínua do salário mínimo e a previdência universal) resultou em acelerada incorporação social pela via do consumo. Mas não se limitou a isso, pois o consumo, o acesso a novos bens, acaba por ampliar a margem de autonomia dos que dele se beneficiam. Autonomia em vários sentidos, inclusive no sentido político, de pensar e escolher com a própria cabeça.

As coisas iam nesse rumo quando o governo Lula ingressou em sua terceira fase. Eclodiu a crise financeira global, que se espraiou como crise também econômica, afetando a produção e o emprego. Os vaticínios para o Brasil eram sombrios. Lula comandou uma estratégia anticíclica que se revelou decisiva para reduzir o impacto dos problemas externos sobre o país. O Brasil fez do limão uma limonada. Saiu da crise maior do que nela entrou. No sistema internacional em mutação, estamos diante de novas possibilidades (e, por certo, novas responsabilidades).

Sobre o quadro recente, há muito que comentar, mas fico apenas com um ponto, à guisa de conclusão: a política pró-ativa de enfrentamento da crise produziu o reencontro do lulismo com o petismo, uma vez que o foco recaiu na expansão do mercado interno por meio do consumo de massa – um objetivo que o PT acalenta desde suas origens, na expectativa de combinar o desenvolvimento econômico com o desenvolvimento social. A crise iluminou essa combinação construtiva, deixando clara a função econômica da política social.

Otávio Soares Dulci é sociólogo e cientista político e professor da PUC Minas

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