terça-feira, 28 de junho de 2011

A política


A política

É preciso pensar na política; se não pensarmos o bastante, seremos cruelmente punidos. (Alain)

O homem é um animal sociável: só pode viver e se desenvolver entre seus semelhantes.

Mas também é um animal egoísta. Sua “insociável sociabilidade”, como diz Kant, faz que ele não possa prescindir dos outros nem renunciar, por eles, à satisfação dos seus próprios desejos.

É por isso que necessitamos da política. Para que os conflitos de interesses se resolvam sem recurso à violência. Para que nossas forças se somem em vez de se oporem. Para escapar da guerra, do medo, da barbárie.

É por isso que precisamos de um Estado. Não porque os homens são bons ou justos, mas porque não são. Não porque são solidários, mas para que tenham uma oportunidade de, talvez, vir a sê-lo. Não “por natureza”, não obstante o que diz Aristóteles, mas por cultura, por história, e é isso a própria política: a história em via de se fazer, de se desfazer, de se refazer, de continuar, a história no presente, e é nossa história, e é a única história. Como não se interessar pela política? Seria não se interessar por nada, pois que tudo depende dela.

O que é a política? É a gestão não guerreira dos conflitos, das alianças e das relações de força - não entre indivíduos apenas (como podemos ver na família ou num grupo qualquer) mas na escala de toda uma sociedade. É portanto a arte de viver juntos, num mesmo Estado ou numa mesma Cidade (pólis, em grego), com pessoas que não escolhemos, pelas quais não temos nenhum sentimento particular e que são, sob muitos aspectos, nossas rivais, tanto quanto ou mais até que aliadas. Isso supõe um poder comum e uma luta pelo poder. Isso supõe um governo, e mudanças de governo. Isso supõe choques, mas sujeitos a regras, compromissos, mas provisórios, um acordo enfim sobre a maneira de solucionar os desacordos. Fora disso, só haveria a violência, e é isso que a política, para existir, deve impedir antes de mais nada. Ela começa onde a guerra acaba.

Trata-se de saber quem manda e quem obedece, quem faz a lei, como se diz, e é isso que se chama de soberano. Pode ser um rei ou um déspota (numa monarquia absoluta), pode ser o povo (numa democracia), pode ser um grupo de indivíduos (uma classe social, um partido, uma elite de verdade ou que assim se pretende: uma aristocracia)... Pode ser, e é o que acontece com freqüência, uma mistura singular desses três tipos de regime ou de governo. O caso é que não haveria política sem esse poder, que é o maior de todos, pelo menos nesta terra, e a garantia de todos os outros. Porque “o poder está em toda parte”, como diz Foucault, ou antes, os poderes são incontáveis; mas só podem coexistir sob a autoridade reconhecida ou imposta do mais poderoso dentre eles. Multiplicidade de poderes, unicidade do soberano ou do Estado: toda a política se joga aí, e é por isso que ela é necessária. Vamos nos submeter ao primeiro bruto que aparecer? Ao primeiro liderzinho que se apresentar? Claro que não! Sabemos perfeitamente que é necessário um poder, ou vários, sabemos que é preciso obedecer. Mas não a qualquer um, mas não a qualquer preço. Queremos obedecer livremente: queremos que o poder a que nos submetemos, em vez de abolir o nosso, o fortaleça ou o garanta. Nunca conseguimos isso plenamente. Nunca renunciamos inteiramente a isso. E é por isso que fazemos política. É por isso que continuaremos a fazer. Para sermos mais livres. Para sermos mais felizes. Para sermos mais fortes. Não separadamente ou uns contra os outros, mas “todos juntos”, como diziam os manifestantes do outono de 1995, ou antes, ao mesmo tempo juntos e opostos, já que é preciso, já que, não fosse assim, não precisaríamos de política.

A política supõe a discordância, o conflito, a contradição. Quando todo o mundo está de acordo (por exemplo, para dizer que é melhor a saúde que a doença, ou que a felicidade é preferível à infelicidade...), não é política. E, quando cada um fica no seu canto ou só trata dos seus assuntos pessoais, também não é política. A política nos reúne nos opondo: ela nos opõe sobre a melhor maneira de nos reunir! Isso não tem fim. Engana-se quem anuncia o fim da política: seria o fim da humanidade, o fim da liberdade, o fim da história, que, ao contrário, só podem - e devem - continuar no conflito aceito e superado. A política, como o mar não pára de recomeçar. Porque ela é um combate, e a única paz possível. É o contrário da guerra, repitamos, o que fala o bastante da sua grandeza. É o contrário do estado natural, e isso fala o bastante da sua necessidade. Quem gostaria de viver inteiramente só? Quem gostaria de viver contra todos os outros? O estado natural, mostra Hobbes, é “a guerra de todos contra todos”: a vida dos homens é, então, “solitária, necessitosa, penosa, quase animal, e breve”. Melhor um poder comum, melhor uma lei comum, melhor um Estado comum - melhor a política!

Como viver juntos e para quê? São esses os dois problemas que é preciso resolver, e logo depois tornar a levantar (pois temos o direito de mudar de opinião, de lado, de maioria...). Cabe a cada um refletir sobre eles; cabe a todos debatê-los.

O que é a política? É a vida comum e conflituosa, sob o domínio do Estado e por seu controle; é a arte de tomar, de conservar e de utilizar o poder. É também a arte de compartilhá-lo, mas porque, na verdade, não há outra maneira de tomá-lo.

Seria um erro considerar a política uma atividade unicamente subalterna ou desprezível. O contrário é que é verdade, claro: ocupar-se da vida comum, do destino comum, dos confrontos comuns é uma tarefa essencial, para todo ser humano, e ninguém poderia esquivar-se dela. Você vai deixar o caminho livre para os racistas, os fascistas, os demagogos? Vai deixar uns burocratas decidirem por você? Vai deixar uns tecnocratas ou uns carreiristas imporem a você uma sociedade que seja a cara deles? Com que direito, então, você poderia se queixar de que as coisas vão mal? Como não ser cúmplice do medíocre ou do pior, se você nada faz para impedi-los? A inação não é uma desculpa. A incompetência não é uma desculpa. Não fazer política é renunciar a uma parte do seu poder, o que é sempre perigoso, mas também a uma parte das suas responsabilidades, o que é sempre condenável. O apoliticismo é ao mesmo tempo um erro e uma culpa: é ir contra seus interesses e seus deveres.

Mas também seria um equívoco querer reduzir a política à moral como se ela só se ocupasse do bem, da virtude, do desinteresse. Mais uma vez, o contrário é que é verdade. Se a moral reinasse, não precisaríamos de polícia, de leis, de tribunais, de forças armadas: não precisaríamos de Estado, nem portanto de política! Contar com a moral para vencer a miséria ou a exclusão é, evidentemente, conversa fiada. Contar com o humanitarismo para fazer as vezes de política externa, com a caridade para fazer as vezes de política social e até mesmo com o anti-racismo para fazer as vezes de política de imigração, é evidentemente conversa fiada. Não, claro, que o humanitarismo, a caridade ou o anti-racismo não sejam moralmente necessários; mas porque não poderiam bastar politicamente (se bastassem, não precisaríamos mais de política) nem resolver sozinhos um problema social qualquer.

A moral não tem fronteiras; a política tem. A moral não tem pátria; a política tem. Nem uma nem outra, é claro, poderiam dar à noção de raça qualquer pertinência: a cor da pele não faz nem a humanidade nem a cidadania. Mas a moral não tem nada a ver tampouco com os interesses da França ou dos franceses, da Europa ou dos europeus... Para a moral só existem indivíduos: para a moral só existe a humanidade. Ao passo que qualquer política francesa ou européia, de direita ou de esquerda, só existe, ao contrário, para defender um povo, ou povos, em particular - não, é claro, contra a humanidade, o que seria imoral e suicida, mas prioritariamente, o que a moral não poderia nem impor nem proibir em absoluto.

Você poderia preferir que a moral bastasse, que a humanidade bastasse: você poderia preferir que a política não fosse necessária. Mas estaria se enganando sobre a história e se mentindo sobre nós mesmos.

A política não é o contrário do egoísmo (o que a moral é), mas sua expressão coletiva e conflituosa: trata-se de sermos egoístas juntos, já que essa é a nossa sina, e da maneira mais eficaz possível. Como? Organizando convergências de interesses, e é isso que se chama solidariedade (diferenciando-se da generosidade, que supõe, ao contrário, o desinteresse).

É comum desconhecer essa diferença, razão a mais para insistirmos nela. Ser solidário é defender os interesses do outro, sem dúvida, mas porque eles também são - direta ou indiretamente - os meus. Agindo por ele, também ajo por mim: porque temos os mesmos inimigos ou os mesmos interesses, porque estamos expostos aos mesmos perigos ou aos mesmos ataques. É o caso do sindicalismo, da Seguridade Social ou dos impostos. Quem se consideraria generoso por contribuir para a Seguridade Social, sindicalizar-se ou pagar seus impostos? A generosidade é outra coisa: é defender os interesses do outro, mas não por também serem os meus é defendê-los mesmo que não compartilhe deles - não porque eu ganhe alguma coisa com isso, mas porque ele, o outro, ganha. Agindo por ele, não ajo por mim - pode ser que eu até perca alguma coisa, aliás é o que costuma acontecer. Como conservar o que se dá? Como dar o que se conserva? Não seria mais doação, e sim troca; não seria mais generosidade, e sim solidariedade.

A solidariedade é uma maneira de se defender coletivamente; a generosidade, no limite, é uma maneira de se sacrificar pelos outros. É por isso que a generosidade, moralmente falando, é superior; e é por isso que a solidariedade, social e politicamente, é mais urgente, mais realista, mais eficaz. Ninguém paga a Seguridade Social por generosidade. Ninguém paga seus impostos por generosidade. E que estranho sindicalista o que se associaria a um sindicato unicamente por generosidade! No entanto a Seguridade Social, o sistema tributário e os sindicatos fizeram mais pela justiça - muito mais! - do que o pouco de generosidade de que este ou aquele soube, vez ou outra, dar prova. A mesma coisa vale para a política. Ninguém respeita a lei por generosidade. Ninguém é cidadão por generosidade. Mas o direito e o Estado fizeram muito mais, para a justiça ou para a liberdade, do que os bons sentimentos.

Solidariedade e generosidade nem por isso são incompatíveis: ser generoso não impede de ser solidário; ser solidário não impede de ser generoso. Mas tampouco são equivalentes, e é por isso que nenhuma das duas poderia bastar ou fazer as vezes da outra. Ou melhor, a generosidade talvez bastasse, se fôssemos suficientemente generosos. Mas o somos tão pouco, tão raramente, tão pequenamente... Só precisamos de solidariedade porque carecemos de generosidade, e é por isso que precisamos tanto de solidariedade!

Generosidade: virtude moral. Solidariedade: virtude política. O grande problema do Estado é a regulação e a socialização dos egoísmos. É por isso que ele é necessário. É por isso que é insubstituível. A política não é o reino da moral, do dever, do amor... É o reino das relações de forças e de opiniões, dos interesses e dos conflitos de interesses. Vejam Maquiavel ou Marx. Vejam Hobhes ou Spinoza. A política não é uma forma do altruísmo: é um egoísmo inteligente e socializado. Isso não apenas não a condena mas a justifica: já que todos nós somos uns egoístas, vamos sê-los juntos e inteligentemente! Quem não percebe que a busca paciente e organizada do interesse comum, ou do que se imagina ser tal, é melhor, para quase todos, do que o confronto ou a desordem generalizados? Quem não percebe que a justiça é melhor, para quase todos, que a injustiça? Que isso também é moralmente justificado, é mais que evidente, o que mostra que moral e política, em seu objetivo, não se opõem. Mas que a moral não basta para alcançá-lo, é igualmente evidente, e mostra que moral e política também não poderiam se confundir.

A moral, em seu princípio, é desinteressada; nenhuma política o é.

A moral é universal, ou assim se pretende; toda política é particular.

A moral é solitária (ela só vale na primeira pessoa); toda política é coletiva.

É por isso que a moral não poderia fazer as vezes de política, do mesmo modo que a política não poderia fazer as vezes de moral: precisamos das duas, e da diferença entre as duas!

Uma eleição, salvo excepcionalmente, não opõe bons e maus, mas opõe campos, grupos sociais ou ideológicos, partidos, alianças, interesses, opiniões, prioridades, opções, programas... Que a moral também tenha urna palavra a dizer, é bom lembrar (há votos moralmente condenáveis). Mas isso não nos poderia fazer esquecer que ela não faz as vezes nem de projeto nem de estratégia. O que a moral propõe contra o desemprego, contra a guerra, contra a barbárie? Ela nos diz que é preciso combatê-los, claro, mas não como temos maiores oportunidades de derrotá-los. Ora, politicamente, é o como que importa. Você é a favor da justiça e da liberdade? Moralmente falando, é o mínimo que se espera de você. Mas politicamente, isso não lhe diz nem como defendê-las nem como conciliá-las. Você deseja que israelenses e palestinos tenham uma pátria segura e reconhecida, que todos os habitantes de Kosovo possam viver em paz, que a globalização econômica não se produza em detrimento dos povos e dos indivíduos, que todos os idosos possam ter uma aposentadoria decente, todos os jovens uma educação digna desse nome? A moral aplaude, mas não lhe diz como aumentar nossas possibilidades de, juntos, alcançar esses objetivos. E quem pode acreditar que a economia e o livre jogo do mercado bastam para tanto? O mercado só vale para as mercadorias.

Ora, o mundo não é uma. Ora, a justiça não é uma. Ora, a liberdade não é uma. Que loucura seria confiar ao mercado o que não é para se comercializar! Quanto às empresas, elas tendem antes de mais nada ao lucro. Não as critico por isso: é a função delas, e desse lucro todos nós necessitamos. Mas quem pode acreditar que o lucro baste para fazer que uma sociedade seja humana? A economia produz riquezas, e riquezas são necessárias, e nunca serão demais. Mas também precisamos de justiça, de liberdade, de segurança, de paz, de fraternidade, de projetos, de ideais... Não há mercado que os forneça. É por isso que é preciso fazer política: porque a moral não basta, porque a economia não basta e, portanto, porque seria moralmente condenável e economicamente desastroso pretender contentar-se com uma e outra.

Por que a política? Porque não somos nem santos nem apenas consumidores, porque somos cidadãos, porque devemos ser cidadãos e para que possamos permanecer cidadãos.

Quanto aos que fazem da política sua profissão, temos de lhes ser gratos pelos esforços que consagram ao bem comum, sem no entanto nos iludirmos muito sobre a sua competência nem sobre a sua virtude: a vigilância faz parte dos direitos humanos e dos deveres do cidadão.

Não se deve confundir essa vigilância republicana com a ridicularização, que torna tudo ridículo, nem com o desprezo, que torna tudo desprezível. Ser vigilante é não crer cegamente nas palavras dos políticos, mas não é condená-los ou denegri-los por princípio. Não conseguiremos reabilitar a política, como é urgente hoje em dia, cuspindo perpetuamente em quem faz política. No Estado democrático, temos os homens políticos que merecemos. Razão a mais para preferir esse regime a todos os outros: só tem moralmente direito de se queixar dele - e, é claro, motivos é que não faltam! - quem age, com outros, para transformá-lo.

Não basta esperar a justiça, a paz, a liberdade, a prosperidade... É preciso agir para defendê-las, para aprimorá-las, o que só se pode fazer eficazmente de forma coletiva e que, por isso, passa necessariamente pela política. Que esta não se reduza nem à moral nem à economia, já insisti o bastante. O que não significa, lembremos para terminar, que ela seja moralmente indiferente ou economicamente sem alcance. Para todo indivíduo apegado aos direitos humanos e ao seu próprio bem-estar, interessar-se pela política não é apenas seu direito, é também seu dever e seu interesse - é a única maneira, sem dúvida, de conciliá-los mais ou menos. Entre a lei da selva e a lei do amor, há a lei pura e simples. Entre o angelismo e a barbárie, há a política. Anjos poderiam prescindir dela. Animais poderiam prescindir dela. Homens, não. É por isso que Aristóteles tinha razão, pelo menos nesse sentido, quando escrevia que “o homem é um animal político”: porque, sem a política, ele não poderia assumir inteiramente sua humanidade.

“Fazer bem o homem” (a moral) não basta. É necessário também fazer uma sociedade que seja humana (já que é a sociedade, sob muitos aspectos, que faz o homem), e por isso é necessário refazê-la sempre, pelo menos em parte. O mundo não pára de mudar; uma sociedade que não mudasse estaria fadada à ruína. Portanto é preciso agir, lutar, resistir, inventar, salvaguardar, transformar... É para isso que serve a política. Há tarefas mais interessantes? Pode ser. Mas não há, na escala da sociedade, tarefas mais urgentes. A história não espera; não fique bobamente esperando-a!

A história não é um destino, nem somente o que nos faz: ela é o que fazemos, juntos, do que nos faz, e isso é a própria política.André Comte-Sponville

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