segunda-feira, 15 de abril de 2013

De que falei? Do trem, nada mais, nada mais...


Bem aventurados os que nele creem!


Quando desponta lá na curva apertada, sei lá, parece até que brotou assim de repente, das entranhas da terra para a superfície trilhada. Já havia lançado seu estranho grito que colocou todos em alerta. O chão tremeu, tudo em volta estremece respeitosamente, luzes vermelhas piscam seus olhos incessantemente. A advertência PARE desce sobre a terra, como se tudo tivesse que dar passagem a este estranho ser que vem majestoso, altivo, com a cabeça erguida arrastando engatado atrás de si a frota submissa que se lhe segue sem indagar de onde, nem para onde.
O caminho é um só, já dado de antemão, trilhamento rigorosamente traçado, não permitindo devaneio algum, possibilidade outra que não a prevista.

Lá vem, pois ele, incólume, rígido, pesado, triunfante, cortante, determinado, vencedor, absoluto, reinando sobre os cortes que faz na pele do campo ou nos intestinos das cidades, até mesmo rasgando seu coração ao meio.

Nada é mais solene, triunfal, grandioso, eloquente, bravio, destemido, indiferente, que sua passagem ruidosa perante a qual todos se detêm, ainda que seja numa mínima sideração. Ou devoção. Ou fé.

Neste seu caminhar decidido, neste maestoso adagio, a parada brusca é impossível, impensável.
Camões se curvaria para fazer cessar "tudo que a musa antiga canta; outro valor mais alto se alevanta."

Quando ele passa, toda a minha vida, todos os anos já vividos, recolhem-se a uma insignificância digna de êxtases de berço para reverenciarem sua rápida e longa, longa passagem que me permite viajar a pontos estranhos do meu mais íntimo.

Sou assolado por uma firme vontade de cantar um Te Deum, de louvar esta engenhoca misto de mecânica e mistério e chego até a pensar que se Deus existe e de tão velho já tem uma bengala na qual se apoia, este objeto a que me refiro é esta bengala.
De que falei? Do trem, nada mais, nada mais...

Autor: Cyro Marcos Silva 

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