quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Falhas que falam



As irregularidades cometidas nesta fase inicial da execução penal dos condenados no processo do mensalão suprimem as aparências de um rito “estritamente técnico” que acusadores e juízes se esforçaram para manter na condução da Ação Penal 470. Agora, transpareceu o desejo de humilhar, espezinhar e incitar ao assédio midiático, que não pode ser atributo da Justiça. De sexta-feira até ontem, ocorreram anomalias diversas, como a injustificada transferência para Brasília de presos que se entregaram na expectativa do direito de cumprir pena nas proximidades do domicílio e a imposição do regime fechado aos que tinham direito ao semiaberto. Houve o deslocamento para o presídio da Papuda sem a devida guia de encaminhamento dos presos, com indicações clara, do juiz executor, das condições de cumprimento de pena, afora a desconsideração para com o estado de saúde de José Genoino. Só ontem, foi anunciado o ajuste nos regimes de prisão. Ainda é insondável a percepção da opinião pública, mas, os que compreendem a gravidade de tais fatos numa democracia e o significado de um Estado judicial, devem ter se preocupado.

Durante oito anos, a trama do mensalão envenenou e dividiu o Brasil. Ódios e intolerâncias contaminaram espaços interativos da internet, alianças e até amizades se perderam. De um lado, os indignados, por rancor político ou sincero ardor republicano, clamando por castigo exemplar e cadeia para os protagonistas do “maior escândalo de corrupção da história”. Em outra faixa, minoritária — mas não circunscrita ao PT e à esquerda —, os que veem no processo um acerto de contas, uma revanche ideológica, propiciada pela narrativa de Roberto Jefferson, que foi confirmada quanto ao fluxo irregular de recursos do PT para os partidos aliados, mas não quanto à origem e à finalidade do dinheiro. A sofisticação dos libelos acusatórios e a condução calculada do julgamento prevaleceram sobre o contraditório, que por sinal, o PT sempre negligenciou, mesmo nas defesas formais. Os presos são muitos, mas, no teatro do confronto, o que hoje conta é o fato de Dirceu, Genoino e Delúbio estarem dormindo na cadeia, como encarnações do PT demonizado. Apesar da excitação, a vida seguirá como sempre. Até prova em contrário, a política seguirá movida por acordos pragmáticos e financiada por dinheiro oculto, tratando todos de evitar lambanças que exijam providências, ainda que não tão drásticas como as adotadas em relação ao PT e seus aliados. Até prova em contrário, que seria a prisão dos poderosos de fato — condenados por tenebrosas transações, mas livres e soltos por aí gastando seus milhões —, o Judiciário seguirá complacente com a elite real. O pecado do PT foi substituir a elite política secular, adotando suas práticas.

Hoje, com a luz batendo forte sobre os crimes da ditadura, muitos se perguntam como foi possível tanta indiferença, à parte os que os aprovavam. Mais tarde, quando o mensalão também for exumado pela história, perguntas que ficaram sem respostas ressurgirão, e alguns se perguntarão como foi possível ignorá-las.

Em sua carta anunciando a deserção, Henrique Pizzolato fala das provas, sempre ignoradas, de que os serviços contratados pela Visanet à agência DNA foram todos executados. Logo, ele não teria desviado de dinheiro público para o valerioduto, o que lhe valeu a condenação por peculato. Logo, os empréstimos seriam reais e isso desmontaria o pilar central da narrativa da acusação. Os autos contêm notas das grandes emissoras de tevê que exibiram a campanha do Ourocard, fotos de outdoors e campanha em mobiliário urbano (painéis em shoppings e pontos das cidades, não compra de móveis, como disse um ministro do STF no julgamento). Até um congresso de magistrados foi patrocinado pelo Visa Ourocard. Por que tais elementos jamais foram considerados? Eis uma pergunta. Uma outra, sem resposta, apareceu durante o julgamento, numa questão de ordem que Joaquim Barbosa indeferiu liminarmente, sem saciar a curiosidade do ministro Marco Aurélio. Dizia respeito à existência do inquérito sigiloso 2.454, que contem várias contraprovas dos réus. Por que corre ainda em sigilo, destacado da Ação Penal 470?

Outra pergunta que o julgamento calou sem responder: quais foram os deputados comprados e quais votações foram viciadas? As reformas da Previdência e Tributária foram aprovadas com quase 400 votos cada uma, muitos da oposição, dispensando a compra de voto. Os recursos, sustenta o PT, foram transferidos a presidentes e dirigentes partidários para honrar compromissos eleitorais. Não, disse a acusação, para serem redistribuídos. Mais tarde, o STF disse que não importava o destino dado às “vantagens indevidas”. Parece importante, pois isso muda a natureza do delito. Mas, se os sete deputados não petistas redistribuíram os recursos recebidos, era fundamental saber quais deputados receberam, foram comprados. Por que não foram investigados, com quebra de sigilo e tudo, todos os que votaram a favor do governo no período? Daí, sim, viriam provas cabais.


Por fim, a teoria do domínio do fato, importada de encomenda para condenar José Dirceu, contra quem faltaram provas, seja de corrupção ativa ou formação de quadrilha. Ele não poderia ignorar, pelo cargo que ocupava, concluíram os ministros. A pergunta é: daqui para a frente será adotado contra todos os ocupantes de elevada posição hierárquica? Não havendo impunidade, haveria uma razia.

Nenhum comentário: